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Cumbiaaaa! O processo de produção da minha HQ para o projeto Quadrinhos Sonoros

Já faz algum tempo que eu vi pela internet o projeto de um artista que inventava palavras para descrever sentimentos muito específicos. Ele abordava coisas como "a sensação de fazer a mesma idade que seus pais tinham quando você nasceu" ou "o momento exato em que você percebe que está feliz". Desde então, vira e mexe eu me vejo tentando nomear alguns sentimentos muito específicos que aparecem sem identidade dentro de mim. Recentemente, eu descobri um que é "a sensação de ver alguém lendo pela primeira vez a história que você fez sobre ele". No caso, este sentimento nasceu em mim às 19h30 do dia 09 de março de 2024, medindo 7 páginas e pesando menos de 1 kg.



Vou começar do começo:


Em setembro de 2023, eu perdi uma ligação do Fabrício Martins, quadrinista e gestor de projetos. Felizmente, ele me enviou um áudio logo em seguida contando o motivo do telefonema: estavam organizando um projeto chamado Quadrinhos Sonoros, onde diversos quadrinistas mineiros fariam histórias em arte sequencial baseadas no trabalho musical de musicistas mineiros. Bairrista que sou, é só falar que preciso enaltecer meu país Minas Gerais que eu já topo (quase) qualquer projeto. Sem titubear, ele me falou "Escolhemos pra você a Orquestra Atípica de Lhamas. É a sua cara, não tem jeito."


Pois era mesmo. Eu já acompanhava o trabalho da Atípica de Lhamas desde 2017: fui em shows, bloco de carnaval, peguei chuva e sol cantando cumbia. A orientação para o projeto era simples: escolher uma música e fazer uma história de 3 ou 7 páginas. Pedi 7 páginas e escolhi a música sem nem pensar duas vezes: "¿como te lhama?" é o hino deles e era essa mesma que eu ia fazer.


Um ponto importante: desde 2019 eu não produzia nada de quadrinhos. Minha carreira se redirecionou naturalmente para a ilustração de livros infantis e eu abracei este processo. De uns tempos pra cá, eu tenho me identificado muito mais como ilustradora do que como quadrinista. Pensei, então, em produzir algo que conseguisse trazer essa nova versão do meu trabalho.


Esmiucei tudo o que eu tinha da Atípica de Lhamas: zerei o Instagram, li várias matérias, vi todos os vídeos. Selecionei os símbolos que eu mais senti que se conectavam com o grupo. Feito isso, mergulhei nas minhas próprias referências. Desde muito jovem sou completamente fascinada pela cultura latinoamericana. Meu grande sonho é conhecer toda a América Latina, realismo mágico é um dos meus gêneros literários favoritos e, ainda assim, eu não havia produzido muita coisa que conversasse com esse lado meu. Eu tenho o hábito de deixar algumas partes de mim guardadinhas e com difícil acesso e, recentemente, percebi que esta é uma delas.



Foi como abrir uma caixa de Pandora: cada referência era uma enxurrada de ideias, de formatos, de símbolos. Foram semanas perdida em rascunhos de flores, corações e florestas tropicais. Optei por trazer o realismo mágico para o projeto: personifiquei a Cumbia em uma personagem que passa pelas páginas da história dançando e espalhando seu baile. Pra manter fino o véu entre fantasia e realidade, optei por não usar painéis quadrados tradicionais em todas as páginas: ora eles pareciam a divisa entre água e terra, ora pareciam estruturas da cidade, ora eles nem existiam. Pra manter o fluxo da dança, escolhi um elemento para ligar tudo: flores, muitas flores. E assim foi: a Mulher-Cumbia bailando, espalhando flores por toda a América Latina, terminando em uma fogueira onde dança com várias de suas versões. Não alterei em absolutamente nada a letra da música, quis deixar como estava.



Entreguei a história em outubro e o livro ficou pronto em março, para ser lançado na CDQCon. Agora voltamos ao dia do nascimento do meu sentimento-sem-nome: em 09 de março, o evento reuniria os artistas e músicos que tivessem disponibilidade para falar da obra. Fui apresentada ao Carlos Bolívia, um dos fundadores da Orquestra Atípica de Lhamas. Havíamos nos falado rapidamente via Instagram uma vez, mas nunca pessoalmente. Carlos chegou a ver alguns rascunhos da história, mas era a primeira vez que ele via tudo pronto. Quando ele abriu na página correta da HQ, meu coração parou. Ele observava as páginas com atenção, mas quando seu olhar parou no painel com as colinas de Potosi ele me olhou e disse "ontem foi meu aniversário, esse foi o melhor presente que eu poderia ganhar". Ali eu desabei.



Como uma introvertida funcional, encontrei formas de me fazer presente no mundo e externar meus sentimentos. Escrever e ilustrar histórias foram as mais eficiente delas. Com o tempo, a profissão vai se consolidando e acaba sendo necessário se desvincular muito profundamente pra conseguir atender as demandas sem levar tudo pro pessoal. Mas as vezes não tem jeito: tinha muito de mim ali e ver como aquilo reverberou no Carlos foi um dos momentos mais bonitos da minha carreira.


Muito obrigada todo mundo que se envolveu nesse projeto. Atípica de Lhamas, obrigada pela honra de me deixar existir nesse mundo através da sua arte.


Sigamos bailando!


Cumbia, de preferência.

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