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Miltinho

Seu Miltinho é um senhorzinho que tem uma pequena loja de discos de vinil, mocada no segundo andar de uma galeria de um prédio que fica na Avenida Amazonas com Padre Belchior.

A lojinha do seu Miltinho é meu recôncavo de paz desde que eu tinha uns dezessete anos. Já passei horas lá, só olhando os discos, um a um, sujando as pontas dos dedos de poeira. As vezes eu mandava um “esse Supertramp era pra estar aqui?” e ele respondia, meio bravo, meio sério e graciosamente fanho “Nã, me dã isso aq-í”, enquanto jogava o disco em uma pilha aleatória.

Outras vezes, eu chegava e, em cinco minutos, já havia comprado o que queria e estava correndo para ir embora e conseguir pegar o ônibus das cinco e meia (“Não precisa de sacola! Sério, não precisa! Ai, tá bom!”).



Gosto de imaginar que o seu Miltinho mora sozinho, num pequeno apartamento na rua São Paulo, lotado de discos, livros e algumas vitrolas velhas. Na minha cabeça, ele foi vocalista de uma banda de garagem nos anos sessenta enquanto trabalhava como livreiro num sebo. Eles nunca fizeram sucesso, mas se divertiram muito. Depois, mais ou menos aos vinte anos, ele entrou para a faculdade de jornalismo e trabalhou escrevendo sobre esportes.

Nesse meio tempo, conheceu a Soraia, uma moça linda com a qual ele viveu uma ardente história de amor que acabou abruptamente quando ela foi fazer mestrado na Inglaterra. Depois da Soraia, seu Miltinho teve várias outras namoradas, mas nunca a esqueceu.

Quando namoravam, ele ganhou de presente da Soraia uma câmera fotográfica. Ela era uma moça culta e entendida de arte, e o seu Miltinho era completamente louco por ela. Também ficou completamente louco pela câmera que ela deu. O lance das fotografias deu tão certo que ele ficou encarregado das fotos de um pequeno jornal underground da cena punk dos anos setenta. Em determinado momento, uma moça engajada que trabalhava numa agência em Boston o descobriu e conseguiu uma bolsa para que ele fosse estudar nos Estados Unidos. Lá ele se tornou correspondente, fotógrafo e começou a tocar guitarra em outra banda.

Fez um mochilão pela América Latina. E depois pela Ásia. Trabalhou em vários lugares para pagar a estadia, limpou cozinhas, vigiou museus. Foi pra Europa. Tentou encontrar a Soraia, mas ela havia se mudado para Buenos Aires.

Lá pelos trinta, seu Miltinho voltou para o Brasil. Foi fazer mestrado, doutorado e começou a dar aulas na universidade. Nessa época, ele começou a colecionar discos. Colecionar mesmo. Juntou dinheiro o suficiente para comprar seu pequeno apartamento na rua São Paulo, coisa que conseguiu aos trinta e cinco ou trinta e sete. Continuou dando aulas e devorando livros no seu tempo livre. Aos quarenta foi surpreendido pela notícia de que a Soraia havia voltado. Se encontraram e viveram o restante daquela história de amor: ele no seu pequeno apartamento da rua São Paulo e ela em um charmoso flat na Augusto de Lima. Comemoraram dez anos de união em Buenos Aires, que ela adorava. Depois vinte, depois perderam a conta. Infelizmente, a Soraia teve uma doença que ninguém sabe qual foi e morreu antes dos setenta. Ele ficou arrasado. Eles não tiveram filhos.

Ele se aposentou bem. Pegou o dinheiro inteiro e comprou uma salinha modesta nessa mocada no segundo andar dessa galeria na Avenida Amazonas com Padre Belchior. Ele vai a pé pro trabalho todos os dias: nunca teve carro e nem sabe dirigir. Com o dinheiro que ganha, vive com conforto o suficiente para não precisar da ajuda de ninguém, apesar de ter sobrinhos muito queridos que fazem questão de pagar a internet que ele quase nunca usa.

Hoje o seu Miltinho guarda os discos da Soraia (ela era da turma do glam rock) num baú no seu escritório. Ele viaja uma ou duas vezes por ano para São Paulo, onde tem alguns amigos. De vez em quando vai pra Buenos Aires. Ano passado foi pra Inglaterra com um dos sobrinhos. Esse ano ele não vai poder viajar muito porque tem que monitorar o coração. Mas tem aproveitado o tempo livre para aprender a tocar sanfona.

Seu Miltinho faz parte da minha vida desde muito tempo e eu criei todo um contexto imaginário em torno dele. A verdade é que eu realmente não sei se ele se chama Milton, não sei nem se a loja de discos é dele e muito menos se existiu uma Soraia. Mas tenho medo de perguntar e estragar algo bonito. Seguimos nesse acordo mágico: ele não me corrige quando eu o chamo de Milton e eu continuo comprando meus discos sem fazer muitas perguntas.

E penso que o mesmo deve acontecer do lado de lá: meu nome é Rebeca, mas ele só me chama de Bárbara.

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